Uma noção ainda vaga de todo o dano

Na Brasília do fim da década de 2010, Rita e Paulo, um casal de professores universitários, fazem o que podem para tentar amenizar a crise de seu casamento e resolver a sucessão interminável de conflitos envolvendo os dois filhos adultos. Eliane, funcionária pública, arrasta até os trinta o peso de uma gravidez precoce e descarrega boa parte da raiva no irmão, Daniel, um eterno irresponsável que anuncia, entre um projeto fracassado e outro, que terá um filho com o namorado. A amargura de viver no Brasil entre o impeachment de 2016 e o governo da extrema direita em 2019 se manifesta nas sufocantes relações de uma família de classe média alta nesse romance denso e lúcido de Breno Kümmel. A tragédia da nossa política emoldura a tragédia das relações familiares e pessoais dos protagonistas, eles mesmos cativos de seus preconceitos e privilégios. Não se contentando em eviscerar uma casta social facilmente caricaturável, Breno vai além, investigando os vínculos mais profundos e opacos entre os fatos históricos e as vicissitudes dos afetos. Isso quando não irrompe o caos puro e simples, encarnado pela doença ou pelos azares do destino. Breno alcança potentes efeitos literários com um domínio exemplar da prosa, não apenas alternando pontos de vista, mas também adentrando, com lente de aumento implacável, a consciência das personagens. A linguagem transita com fluidez às vezes alucinante entre a narração objetiva e os fluxos de subjetividade. A riqueza dos detalhes serve tanto à revelação de nuances quanto à administração de precisas doses de ironia. Para muitos leitores, as desaventuras dessa família nesse recorte de tempo poderá soar como o preâmbulo de mazelas ainda por vir. O sabor amargo domina. Este não é um romance concebido para apontar saídas e soluções. Mas, ao nos enredar nos dramas de vidas tão convincentemente criadas, ele alarga nossa percepção do passado recente para que talvez possamos fazer brotar, dos nossos descontentamentos e moléstias compartilhados, as faíscas da compaixão e da transformação. Por Daniel Galera